A voz de Deus
Documentando por dez anos a infância perdida de crianças pregadoras.
Erika Amaral
10/28/20253 min ler


Hoje, 26,9% dos brasileiros é evangélico. Desses, quantas famílias imaginam em suas crianças a sua salvação, a sua possibilidade de futuro?
A voz de Deus coloca em evidência um incômodo: a exploração de crianças como pregadores do Evangelho. Digo “exploração” porque, apesar de as próprias personagens verem seu trabalho de pregação como uma doação ou missão, cada uma delas, à sua maneira, enfrenta a perda da inocência da infância com compromissos, tarefas, responsabilidades e demandas que não são próprias da infância. São do trabalho e da vida adulta. E por isso cada um dos jovens pregadores, tanto Daniel quanto João Ota, nos dão algumas pistas da sua exaustão.
Daniel, estampando capas de DVDs antigos, que aparenta ter vergonha de levar para o mundo digital, carrega uma melancolia perceptível. Em muitas de suas cenas, parece perambular, sem saber onde se encaixa: como um pregador, como um trabalhador, como um pai de família, como um jovem jogando Fifa e comendo pizza, ou como um filho afastado do pai.
Ota, o pequeno influenciador, acaba se tornando um adolescente com síndrome de Neymar. Um pouco mais respondão, um pouco mais mimado, mas ainda assim, se deita no chão com a exaustão e a vontade de se desligar depois de um longo dia de trabalho que uma criança não deveria sentir. Até a cena final, sobre o touro mecânico, esse desconforto prevalece: vemos por tanto tempo aquela criança sendo sacudida, sem cair, sem enfraquecer, atendendo a todas as expectativas que se coloca sobre ele, mas qual a graça dessa brincadeira senão saber que o touro é imbatível e que vamos cair em algum momento? Por que Ota não pode cair e falhar, como qualquer pessoa normal? Ou como qualquer criança normal?
Para além das crianças, os pais e mães nesse documentário são um ponto de tensão. No caso de Daniel, há um pai criando sozinho seus dois filhos, vendo neles o seu futuro – um pregando e a outra cantando na igreja. Mas esse futuro vai se esvaindo conforme Daniel cresce e o “prestígio” da criança pregadora acaba. Até na pregação “mirim” as pessoas são descartáveis, substituíveis pelo próximo hit de Tiktok ou Instagram, passando o bastão no encontro de Gideõzinhos.
O pai de Daniel veste a camiseta de Bolsonaro e entrega panfletos. Anos mais tarde, seu filho perambula pela comemoração da vitória de Lula e grava um áudio para o pai comentando sobre seu afastamento. Aqui, porém, esse movimento parece enxertado. Não se aprofunda em como essas pessoas veem seus representantes políticos – e, como movidas pela fé, poderia ter sido um importante eixo do filme.
Já o pai de Ota, também pregador mas também borracheiro, constrói “junto” ao filho um canal de vendas online, tentando promover os blazers, camisas e calças com a influência digital do filho. Uma placa prateada do YouTube e um comentário sobre “um milhão” de seguidores não parecem ser o bastante para alavancar as vendas, já que em um momento se ouve o tristíssimo comentário de que ganham apenas de 20 a 30 reais sobre cada peça vendida, explicando ao filho como aquilo ainda é muito pouco.
A voz de Deus deixa uma indigestão profunda sobre o Brasil. As crianças são exploradas, as famílias vivem em um contexto de pobreza gritante, suas casas são precárias, suas igrejas caem aos pedaços. O que se busca é o mínimo de conforto e dignidade, busca alimentada por uma fé de que as coisas irão melhorar, com discursos repetidos muitas vezes de que não precisam de dinheiro, apenas de Jesus, em um contexto torpe de acúmulo de riqueza cada vez mais frequente pelos grandes líderes das vertentes evangélicas.
Como documentário, essa indigestão é ainda mais grave. Na sala de cinema, do alto da famosa Rua Augusta, com ilustres professores universitários e a nata da elite intelectual paulistana, eu observava as crianças do filme correndo pelo cinema. Riam, brincavam, crianças. Porém durante a projeção, ria-se. E acredito que ríamos deles, e não com eles. Ríamos da entonação exagerada dos pregadores mirins, ríamos de seus hábitos, ríamos de um filho tentando interromper a fala da mãe, ríamos de suas “pataquadas”. Ríamos com o riso da iluminura, de quem está do outro lado do espelho. Até o discurso do cineasta, de que este filme está muito distante de seu mundo de origem, coloca a sensação de que estamos entrando em um zoológico, olhando para aqueles espécimens como pessoas muito distantes – ou até mesmo abaixo – de nós mesmos.
Ria-se deles, com eles presentes em sala. Ria-se de 29,6% do Brasil. Mas a que custo? Depois, fingimos não entender como a direita ganhou tanta força.
A voz de Deus, dirigido por Miguel Antunes Ramos, faz sua estreia na 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

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