Morte e vida Madalena

Protagonismo trans na metalinguagem do humor: um filme sobre novas formas de fazer cinema brasileiro

10/28/20253 min ler

Conheci Inferninho, de Guto Parente e Pedro Diógenes, na Mostra Novíssimo Cinema Brasileiro do CINUSP em 2019. Esse é um filme misterioso, úmido, bonito, com a canção Anjo de Guarda que não saiu da minha cabeça por dias, e me marcou pela presença de personagens e sexualidades não-normativas em primeiríssimo plano. Esperava algo semelhante em Morte e vida Madalena, um cinema vivo de personagens luminosas, e fui surpreendida por uma comédia metalinguística protagonizada por uma mulher trans. Cinema sobre cinema, elegante e absurdo.

No início, havia a morte. A morte do pai como um renascimento da filha é um motivo forte. Em Morte e vida Madalena, o velório acontece em um teatro. Das aproximações possíveis, rezar os mortos em lugares inesperados é uma tradição cinematográfica que aparece em Buñuel, Glauber Rocha, Ana Carolina, e traz uma abertura potente ao filme – ainda mais potente por um acidente com o gelo seco, que logo de início dá a tônica da tragicomédia.

Com a morte do pai, Madalena herda seu último roteiro e toca filmá-lo. O diretor desaparece, aparece a polícia, todas as pessoas do set correm o risco de se tornarem diretores daquela bagunça alienígena. O tom cômico e inteligente está em toda a narrativa, com segurança e estilo, como a cena em que Madalena diz a um ator “segura tua onda, por favor” e prolonga este “r” final até o limite do absurdo, tirando muitos risos da sala de cinema. E em um filme de comédia, o riso do público é a única trilha sonora que importa.

A trilha sonora, por sua vez, é construída com referências que parecem ter saído daquelas playlists de “música de carro de pai”. Porto Solidão traz talvez o maior aprofundamento emocional com um microfone que passa de mão em mão em um karaokê, combinando diferentes solidões em uma mesma música. Assim como as cantorias criavam uma cumplicidade entre as figuras no bar de Deusimar, anos atrás, em Inferninho.

O tom sério e seco da personagem interpretada pela atriz trans Noá Banoba equilibra as piadas e bobagens, como uma mãe sábia que esconde sua vulnerabilidade mas precisa olhar sobre o muro para ver seu passado e encontrar ali as respostas que faltam no presente. No resgate das cenas da infância – tanto em flashback quanto em animação – há um bonito estudo de personagem que reflete sobre luto, esperança e futuro.

Noá carrega Madalena e o bebê com personalidade. No início da sessão, ela comenta sobre como ainda é raro termos atrizes e atores trans interpretando papéis complexos, marca de um país que ainda assassina pessoas trans pelo simples fato de existirem.

Aqui, Madalena quer viver, fazer seu filme, cuidar das pessoas ao seu redor, honrar a memória do pai. É um sopro de novidade no nosso cinema, e o filme deixa clara a importância política desse protagonismo: trazer à vida, em resposta à morte, não apenas um bebê, mas um cinema jovem, refrescante, que inventa novos modos de existir na tela.

E este é um cinema afirma que corpos trans podem e devem ocupar espaço de complexidade, humor e afetividade na tela, expandindo o que podemos esperar do cinema brasileiro de hoje.

Morte e vida Madalena foi exibido na 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Curtas e longas-metragens de Guto Parente estão disponíveis para locação no Embaúba Play.