O agente secreto

Ainda em momento de fascinação com a premiação em Cannes e lançamento no Brasil, esse é só o início do debate sobre o filme do ano.

Erika Amaral

10/27/20253 min ler

Bonita fotografia, sem aquela sensação artificial de período histórico, tudo levemente sépia. Está muito rico nos detalhes, os carros antigos nas ruas, os telefones nas paredes e mesas, abajures, os detalhes de figurino. Tudo muito familiar, muito brasileiro, como olhar o álbum de retrato na casa da vó. Uma conquista em termos de imagem.

De narrativa, esperava algo totalmente diferente, talvez influenciada pelo terremoto que foi Ainda estou aqui imaginei que viria outro filme de ditadura e perseguição militar. Mas o plot inédito do desmonte da pesquisa e da universidade pública é o que fica no primeiro plano, o ódio ao comunismo e intelectualidade de esquerda aparecem aqui e ali na boca do coronelismo, já a ditadura fica pendurada nas paredes nos retratos de presidentes como um mofo teimoso.

Agora, o título "o agente secreto" me deixa intrigada. Me parece curioso no que o filme constrói, uma referência muito viva ao filme com Jean-Paul Belmondo, mas ainda pouco assentado no que a narrativa trouxe. Por outro lado, gosto de ver Pasqualino Setebelezas em cartaz no cine São Luiz, já que Lina Wertmüller é talvez a melhor cineasta da fúria marxista e faz todo sentido naquele universo.

Ao final, sinto um vício narrativo que está presente também em outros momentos recentes do cinema brasileiro, como a aparição de Fernanda Montenegro em Ainda estou aqui e também em A vida invisível de Karim Aïnouz. Uma professora uma vez comentou que o cinema dos Estados Unidos tem uma obsessão por “closure”, sempre fechando perfeitamente as suas narrativas pra abraçar o expectador e amaciar qualquer disrupção entre o fim do filme e o retorno à realidade. E por outro lado, o cinema europeu contemporâneo tem “pirraçado” os limites do cinema de final aberto, com tanto desejo de ruptura que até dá pra prever qual será o plano final do filme - tipo um primeiríssimo plano no rosto do protagonista olhando "pro futuro", rs, vide Não deixe o sol e Wolves, nesta 49a Mostra).

Mas aqui percebo que estamos ainda um pouco embolados em como fechar as narrativas, talvez me incomode particularmente esse recurso de elenco interpretando pai/mãe/filho/filha, dando respostas demais ao que nós como expectadores podemos e devemos apenas refletir sobre e não necessariamente receber como imagem. Por isso, senti algumas pontas mal-amarradas - por que a instituição doaria materiais pra depois reavê-los correndo o risco (óbvio) de vazamento de dados justamente em um caso de "queima de arquivo"?

Inútil comentar sobre como Dona Sebastiana é um ponto único e genial, extrapolando a dimensão do filme pra ser tornar um ícone de Brasil. E isso é incrível e grandioso. Tal como a(s) gata(s) e a perna cabeluda são o toque de surrealismo que convoca o absurdo que é o nosso país, cheio de bichos mágicos, crenças, jornalecos sanguinolentos, memória apagada, fake news e gente andando armada. Tudo o que envolve A Perna, desde o tubarão até os chutes, me faz pensar nos primeiros Klebers – como a cascata de sangue e os fantasmas correndo pelos corredores em O som ao redor. E é um filme totalmente apaixonado por Recife, falando sempre de seus lugares, praças e cinemas, o que é também divino e maravilhoso, como uma ressurgência de cinema novo.

Agora, Kleber, essa é pra você. Esta é a segunda fila impossível que enfrento para ver um filme seu. Se antes tinha ficado umas quatro horas para a pré-estreia de Bacurau no Conjunto Nacional, ontem foram umas 2h em pé do lado de fora da Cinemateca Brasileira. E eu já envelheci, tenho dor nas costas, assim isso não pode continuar, não sei o que vai ser de mim no próximo lançamento. Mas como os atores disseram no início da sessão, tudo naquele dia estava sendo histórico. A abertura do filme com todas as suas palmas de ouro dá um tipo de orgulho nacional e alegria de estar viva nesse momento oportuno que só o cinema pode trazer. Força e seguimos nessa campanha pra exponencializar O agente secreto pro Brasil e pro mundo. Desejo semanas e semanas de circuito exibidor e muito reconhecimento.

O agente secreto estreia no dia 6 de novembro.