Papagaios

Formas de sobreviver à morte, narcisismo desinibido e mais um momento brilhante de Gero Camilo no cinema

Erika Amaral

11/10/20253 min ler

"E nos seus olhos era tanto brilho

Que mais que seu filho

Eu fiquei seu fã"

Uma noite quente de parque de diversões, jovens no disco giratório, luzes neon correndo pela tela conforme o disco ganha velocidade. Por trás do acidente iminente, o rosto enigmático de Beto olha para a câmera, em uma releitura do plano final de Psicose (1960). Em seus olhos, alguma coisa parece corrompida, perniciosa, convidando a morte a entrar. Dissociação.

Papagaios, primeiro longa-metragem de Douglas Soares, é todo sobre retratos: como as personagens aparecem diante e detrás das câmeras, ornando o ombro dos jornalistas de tragédias como as aves de pirata. Como uma dança, bem ou mal sincronizada, dentro da moldura dos jornais. Como um ensaio, diante do espelho, entre Tunico e Beto, num aprendizado de seus melhores ângulos, olhares, carões e posturas - como dois modelos, vaidosos, aprendendo o ofício de posar.

Tunico já é experiente nessa arte. Tem anos e anos de história como papagaio e melhor amigo dos jornalistas. Preenche um cômodo inteiro de sua sala, como um espaço de museu, com todas as suas aparições - das mais importantes até as mais irrelevantes. Tunico decora as divulgações de velórios, acidentes, assassinatos, faltas de água e escândalos políticos com a sua presença singela, mas decidida, com um de seus muitos paletós. E o cabelo impecavelmente penteado.

Tudo se trata de vaidade. Quando, onde e como aparecer. Qual lado do rosto colocar em evidência; como se sobrepor à multidão para ganhar mais destaque no enquadramento. O acompanhamento religioso das mortes e da possibilidade de morte é também o desejo de viver, de registrar sua vida através dos jornais, revistas e noticiários. Estar vivo ao lado dos mortos, quase um poema.

Seduzido por esse estilo de vida, o também vaidoso Beto se aproxima de Tunico. Juntos, constroem um novo guarda-roupa para o garoto. Ele passa a ocupar um espaço vazio na vida e na casa de Tunico, tapando com a sua juventude, força e beleza os buracos deixados pelos porta-retratos caídos da parede.


Beto não só é apaixonado pelo que é de thanatos, mas também pelo que é de eros. Move-se com uma sensualidade irresistível para o motorista do cantor Leo Jaime, tornam-se amantes em uma negociação que não esconde segundas intenções. O plano é fazer brilhar, cada vez mais, a dupla Tunico e Beto a partir da morte.

Os papagaios, então, se tornam águias. São predadores em busca das vítimas fatais que possam compor mais uma aparição pública de sucesso, mais uma notícia para pendurar na parede como troféu, como cabeça de animal abatido. Quase como nas vigílias nas noites de Los Angeles em Nightcrawler (2014), ou ainda, na armação das mortes para veiculação sensacionalista tão brilhantemente contada na série Bandidos na TV (2019), da Netflix. Os papagaios, mais do que falantes e exuberantes, são malignos em sua obsessão por ver e serem vistos.

Tunico e Beto desenvolvem um relacionamento de mestre e aprendiz, ou talvez, de pai e filho. O pai que faltava para o filho que nunca se teve. Na pista da música Naquela mesa, Tunico olha para o garoto com generosidade, divide não só seus círculos sociais, mas também tudo o que sabe, tudo o que conquistou em tantos anos de profissão. Beto, por outro lado, sorve tudo o que pode, até tensionar os limites do aceitável. Em um surto de raiva e cada vez mais ressentimento, destrói a maior preciosidade de Tunico, deixando um rastro de penas e dor que marca o início do fim daquela parceria.

Gero Camilo, uma das maiores estrelas do cinema brasileiro, faz de Tunico uma figura decidida, cheia de personalidade e de uma cafonice impecável. Carregando a faixa de Tunico, o eterno criador de Sem Chance em Carandiru (2003) não por acaso aparece duas vezes na propaganda da Petrobras que abria os filmes da Mostra. Já Ruan Aguiar, sangue novo e de grande potencial, desenvolve com muita força um homem de passado desconhecido cujos traumas pulsam cada vez mais no presente. Sua introdução à sessão, na noite de estreia do filme na Cinemateca Brasileira em meio à 49ª Mostra de Cinema de São Paulo, falava sobre filmes construídos juntos, e sobre quem, afinal, escreve as narrativas que contamos - e os retratos em que nos colocamos, ou somos colocados.

Papagaios é um filme impressionante em sua construção narrativa, nos plots inesperados e twists impactantes. Fala sobre querer ser lembrado, sobre o fato de que ninguém quer passar desapercebido nesse mundo. E Papagaios não passa despercebido - pelo contrário, figura como um dos mais marcantes filmes brasileiros nesta seleção da Mostra em 2025. Uma história de Brasil, vaidade, televisão e memória que, como o olhar perfurante de Beto, se fixa nas mentes e merece ser lembrada.