The Smashing Machine
O espetáculo da autodestruição como esporte de combate
Erika Amaral
11/10/20255 min ler


Há um texto clássico de Marcel Mauss, considerado um dos pensadores que fundamentou a visão da antropologia sobre o corpo humano e suas formas de existir socialmente, que trata do sacrifício. O sacrifício é um rito simbólico entre o sagrado e o profano, uma oferenda para manutenção da ordem social e espiritual. Olhando para The Smashing Machine, lutadores de luta livre estão metaforicamente próximos das vítimas sacrificiais dos rituais descritos por Mauss.
Em Mauss, impõe-se aos sacrificantes - aqueles que sacrificam - e aos eleitos ao sacrifício - os sacrificados - uma série de sanções antes do ritual. O ato sexual é a primeira e maior sanção - é necessário se abster de todo e qualquer ato profano previamente ao sacrifício, para manter um estado de pureza, tornar o corpo um instrumento de sacralidade. Quase como se Mark Kerr, enquanto elemento deste sacrifício, devesse se resguardar da figura feminina - capaz de "contaminar" sua pureza de lutador.
The Smashing Machine é um retrato do início da cena de luta livre profissional, nos anos entre 1997 e 2000. Esse tipo de luta começa mais rústico, com mordidas e dedo no olho, e depois se institucionaliza: vários movimentos são proibidos, os lutadores se especializam e profissionalizam cada vez mais, e nesse rápido desenvolvimento, Mark Kerr e Michael Coleman são os lutadores dos Estados Unidos que constroem uma parceria e amizade para além dos ringues. Mas esse cenário ainda está longe da pompa e consagração que há em outros grandes tipos de lutas e artes marciais, como o boxing, gênero que rende belos filmes como Raging Bull (1980), de Martin Scorsese, ou Rocky (1977), de John G. Avildsen.
Numa leitura mais rápida, The Smashing Machine é uma metáfora de Adão e Eva. Adão, o homem à imagem de Deus, determinado e bom, é corrompido pela leviandade de Eva, sujeita à tentação e ao mal. Kerr, o lutador implacável, incapaz de responder a um jornalista como se sentiria se perdesse uma luta; e Dawn, a namorada carinhosa, carente de uma adoração que deveria ser dada a "Deus" - aqui, à luta.
Até o final do filme, é possível se apoiar neste conflito inicial: a performance de Kerr é prejudicada por Dawn em momentos cruciais de sua carreira, quando perde sua primeira luta em 1997 e quando perde em um campeonato decisivo para um lutador japonês em 2000. Em ambos os momentos, Dawn tem um papel decisivo em romper os momentos de preparação, treino e foco de Kerr prévios às lutas.
Nesses momentos de "histeria" ela rompe, inclusive, um vaso de cerâmica que Kerr encontra em uma loja de antiguidades japonesa, sob uma luz esverdeada que mostra os traços muito característicos de iluminação que os irmãos Safdie colocavam em Uncut Gems, e que Benny Safdie mantém presentes em seu primeiro longa solo.
Se Kerr era perfeito, agora não é mais - e pode-se pensar até que o filme cria uma narrativa misógina ao representar Dawn como este elemento da imperfeição, do que derruba o homem do seu lugar de vitória. Porém, o filme nos convida a uma leitura mais complexa do que essa.
Primeiro, a mulher como vilã na vida de um grande astro é uma repetição intolerável. Além de rasa, é um recurso narrativo preguiçoso, que nasce em um contexto de demonização da figura feminina e sua subserviência ao homem como padrão - algo muito maior do que o cinema, mas que está impregnado também no cinema. O filme, nesse sentido, sugere essa leitura como um primeiro plano; mas convida a uma interessante leitura de que "o buraco é mais embaixo".
Segundo, todo o ponto de vista em The Smashing Machine é de Kerr. Olhamos e sentimos o mundo a partir dele, e o que é inegável é o seu amor por Dawn. Kerr tem uma forma carinhosa de se comunicar com Dawn, agradece pelo smoothie que ela fez errado, compra um lenço de presente porque ela "gosta de cores". Ela é importante como companheira, apesar dos conflitos que surgirão.
Porém, Kerr é também um espírito quebrado. Sentado, olhando para o vazio durante os treinos, ou perdendo para o vício em opióides, Kerr batalha antes de tudo consigo mesmo, sendo atacado por todos os ângulos por uma pressão imensa, uma ansiedade insuportável, a insegurança sobre si, o medo de perder, a necessidade de ganhar, sua imagem como lutador, seus competidores, seus financiadores, o medo de morrer. Não à toa, as discussões com Dawn escalam rápido demais e Kerr se torna violento - ela é a gota que faltava para que tudo transbordasse.
Em cada momento em que esta leitura mais simplista de Adão e Eva retorna, aparecem também elementos que direcionam para a temática da autossabotagem: na verdade, o que corrompe Kerr é ele mesmo. Sua luta interna já é avassaladora. Ele já está perdendo essa batalha e sabe disso, injetando drogas que possam desconectar sua mente de seu corpo em dor constante. Sozinho, Kerr já se destruiria completamente. As crises com Dawn só ajudam a colocar mais lenha nessa fogueira, pois ela também tem os seus desejos - ter um filho, ser mais valorizada, deixar o gato deitar no sofá. Mas dentro de si, Kerr já está sendo humilhado pelos seus próprios pensamentos e dores mentais.
E esse movimento fica ainda mais explícito quando, em uma das poucas cenas do filme em que Kerr não comparece, Dawn comenta com Coleman que Kerr já parecia estranho antes da luta que perdera - nos dias anteriores, tinham saído para beber, ele estava sem foco, como se soubesse que iria fracassar. Sinais de uma autossabotagem violenta imposta sobre Kerr pela ansiedade. Sinal de uma autossabotagem vista apenas por Dawn, nesta cena que abandona o ponto de vista de Kerr, porque o próprio Kerr não conseguia vê-la.
O mesmo se repete no grande embate com Dawn antes do campeonato em 2000. Uma briga na cozinha que escala até uma tentativa de suicídio, mais uma porta destruída e Kerr segurando a mulher como se imobilizasse um parceiro no ringue. Ali, Kerr já sabia estar sendo julgado por seu treinador por quebrar o jejum ritualístico dos treinos e voltar para Phoenix com a namorada. Esse peso do julgamento aumenta a carga do protagonista, e, pela primeira vez, vê-se Kerr com uma cerveja na mão - um sinal grave de uma crise interna mais grave ainda. Dawn, novamente, torna-se bode expiatório. Kerr já estava novamente contemplando sua derrota e fugia dos treinos para casa, buscando um esconderijo para se preparar em paz para a sua queda, e Dawn outra vez apenas exacerba essa queda, revelando, nos trincos do vaso de cerâmica, as rachaduras da sua imagem.
A batalha final deveria ser sua consagração como o homem mais forte do mundo - um semideus. Mas Kerr cumpre sua profecia e perde. Ainda assim, perde bravamente, permitindo ao público se deliciar com a sua resistência às joelhadas e socos, fazendo valer o preço dos ingressos para aquele espetáculo sangrento de que era só uma peça do sistema.
Em The Smashing Machine, os vai-e-vens entre Kerr e Dawn fazem eco a esse processo de purificação de que a luta livre parece ser um ritual. O que faltou ao olhar sobre o sacrifício é o estado mental dos sacrificantes. Colocar-se sobre um ringue para bater e apanhar, humilhar e ser humilhado, sangrar e rasgar a pele, estar presente no mundo com o corpo como principal ferramenta de existência, tudo isso envolvido por um prêmio sedutor - uma farta camada de dinheiro que irá garantir a vida dos próximos anos. É um estado inimaginável de tensão e ansiedade que somatiza no corpo as dores da luta. E que sacrifica, enfim, qualquer expectativa de normalidade.
Não expia a culpa de um homem violento, mas desembarga o filme de uma narrativa óbvia para uma profundidade mais instigante.
Referência:
Hubert, Henri; Mauss, Marcel. O sacrifício: estudo da função social do sacrifício. In: MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia, vol. I. São Paulo: EPU / EDUSP, 1974. (p. 95–164). Título original: Essai sur la nature et la fonction du sacrifice (1899).



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