Virtuosas
O horror que mora entre o Evangelho e a submissão, no longa-metragem de Cíntia Domit Bittar
Erika Amaral
10/30/20253 min ler


Somando ao conjunto de filmes sobre o Brasil evangélico, Virtuosas evoca um contexto de seita, com uma líder carismática e seguidoras que nada contestam.
Virgínia, com clara referência a Virgínia Fonseca, uma das figuras mais bestiais dessa década, é uma influenciadora da virtude feminina, dos preceitos de como ser, como se comportar e como pensar que fazem da mulher uma boa mãe e esposa, com a família acima de tudo... e de todos. Eco inevitável de certos discursos que temos ouvido na história recente do país.
Em uma mansão reservada, longe dos ruídos da sociedade, Virgínia leva três seguidoras sorteadas (ou nem tanto) para uma jornada VIP. Ali, grandes ensinamentos, como "meal prep" e submissão ao homem, surgem como o caminho correto para a virtude.
Se estranharmos tudo o que a rede social coloca como o novo normal, estamos realmente em uma distopia. Este é um filme de ironias, que nos provoca sobre essa época em que vemos vídeos de donas do lar montando marmitas para os maridos irem trabalhar, ou vídeos de get ready with me enquanto falamos sobre quem votaremos na próxima eleição.
A diretora e coroteirista catarinense Cíntia Domit Bittar costura alguns comentários críticos às ideologias religiosas que acomodam novamente a mulher em locais de servilismo pacífico, com a doce desculpa de que as mulheres são o pescoço que "orienta" a cabeça do homem.
E faz isso com um tipo de cinema de horror psicológico que remete aos primeiros filmes de Juliana Rojas, Marco Dutra, Gabriela Amaral Almeida, outros cineastas que usam alegorias sobrenaturais para tecer críticas a questões sociais. Paralelismos interessantes surgem com Trabalhar cansa (2011), desde os símbolos misteriosos que aparecem sem explicação, como correntes de ferro no filme de Rojas e Dutra, ou a tesoura pontiaguda em Bittar, até os momentos de descarrego e catarse coletiva, com a sequência final de Trabalhar cansa em que um coach treina os executivos para urrar como lobos, até os momentos de treino de positividade e “yes, yes, yes” entre as mulheres virtuosas.
Aqui, é com a tesoura que se rompe a veia da normalidade. Ela insere uma lenda sobre uma bruxa que enrola uma criança em uma fita enfeitiçada. Como nos melhores filmes de terror, o medo sempre vem das histórias trazidas pelos antepassados, das crenças no limiar entre o real e o imaginário, e do que nossas avós contavam no jantar. A lenda funciona como um gatilho para a loucura que irá assolar essas mulheres.
Cortando-se a fita com a tesoura, corta-se também a boca da feiticeira. A língua da bruxa, por sua vez, aparece como algo descontrolado e ameaçador, num subtexto de tensão sexual que dá um tom interessante, mas que não se desenvolve por completo.
A própria Virgínia poderia ter maior desenvolvimento. Bruna Linzmeyer constrói uma influenciadora que é quase um "vaso", vazio, do que representa. Com a dureza e plasticidade de uma líder de culto. Mas as pontas soltas sobre quem ela realmente é, de onde veio, por que é obcecada por Lorena, ou se pretende de fato se candidatar a algum cargo político, ficam em aberto. Ela é subversiva no que prega, como o vape escondido, mas falta-nos saber quais as suas reais motivações; ou se ela é, de fato, a bruxa.
Há muitas outras linhas que compõem essa trama, como a mulher do candidato ao senado e a fiel infiltrada que cita Fernando Pessoa como oração. Todas sobre um fundo falso de mulheres submissas, com um desfecho que é ousado, mas deixa pistas e perguntas demais - algo próprio do estilo de cinema de horror que opera pelo simbólico, que deixa água na boca, mas também um certo desassossego por saber que muito desta feminilidade virtuosa se baseia, como diz a diretora, em pesquisa: não está no passado, mas sim pulsando forte no presente do Brasil.
Virtuosas foi exibido na 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, vencedor do prêmio Goes to Cannes 2025, com previsão de lançamento em 2026.



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